quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Os desafios da indústria automobilística global


Por Roberto A. Z. Borghi e Fernando Sarti - Valor 06/10

Diante do agravamento da crise econômica internacional em 2008, observou-se a intervenção de diversos Estados nacionais para conter os efeitos negativos da forte contração do crédito sobre a indústria automobilística. As principais iniciativas consistiram em: subsídios para a troca de veículos, redução tributária sobre veículos novos, queda das taxas de juros e empréstimos diretos às montadoras.

Como resultado, estimulou-se a demanda no curto prazo e promoveu-se a reorganização de algumas corporações, recolocando-as diante dos desafios existentes - exacerbados com a crise - no setor. Dessa perspectiva, destacam-se quatro eixos: o padrão de articulação entre finanças e produção no âmbito das companhias; a corrida tecnológica; a necessidade de expansão em outros mercados; e, a emergência de novos players.

Apesar de atingir todas as montadoras, a crise resultou em consequências mais graves para as corporações americanas, reflexo não somente de sua perda de competitividade frente à ascensão asiática, mas também de seu próprio padrão de financiamento, caracterizado por excessiva alavancagem e elevado grau de dependência das atividades de seus braços financeiros. Com a crise, o descompasso entre finanças e produção nessas corporações tornou-se explícito. Após os pedidos de concordata de General Motors e Chrysler e a reestruturação da Ford, emergiram grupos americanos mais enxutos produtiva e financeiramente, possibilitando-lhes repensar sobre a articulação das esferas financeira e produtiva em sua estrutura.

Um segundo desafio refere-se ao processo de inovação tecnológica que, em geral, requer elevados montantes de capital diante dos custos e riscos envolvidos. Trata-se, especificamente, do estabelecimento e do financiamento de uma nova trajetória tecnológica em relação às formas alternativas de propulsão, mais econômicas em combustível e menos poluentes. Nesse quesito, cumprem papel decisivo a orientação governamental e seus auxílios financeiros para atividades inovadoras, bem como sua atuação na regulamentação do setor (por exemplo, normas para segurança e emissão de poluentes).

Outro desafio consiste na busca e conquista de novos mercados, devido à necessidade de expansão das montadoras para além das tradicionais economias desenvolvidas, ainda arrefecidas pela crise. Com a aceleração do crescimento durante a década de 2000 e a rápida retomada do dinamismo interno após a adoção de medidas anticíclicas, as grandes economias em desenvolvimento - notadamente, China, Índia e Brasil - se fortaleceram como importantes eixos das atividades do setor (mercados produtores e consumidores), o que se reflete no direcionamento de produtos e investimentos das empresas para essas localidades.

Como último desafio, tem-se a emergência de novos players, exigindo um reposicionamento dos grupos estabelecidos. Do mesmo modo que japoneses e sul-coreanos entraram no mercado internacional a partir dos anos 1980 e se consolidaram no período mais recente dentre as principais montadoras globais, chineses e indianos se configuram atualmente como concorrentes de alcance mundial. Mediante estratégia de preço (no curto prazo) e de fortalecimento da marca e da imagem de produtos de qualidade (no longo prazo), tais companhias definitivamente vieram acirrar a disputa por participação de mercado, o que altera as condições competitivas pretéritas de um setor concentrado.

Os desafios elencados não apresentam relevância apenas às corporações automobilísticas, mas também às economias com uma estrutura industrial consolidada e peso significativo do setor, como é o caso brasileiro. Cabe, portanto, aos países pautar, com os instrumentos disponíveis de política, a forma de inserção desejável nessa nova configuração do cenário internacional. No momento de acirramento da crise, procurando reverter ou parcialmente cobrir prejuízos nas matrizes, registrou-se elevado volume de remessas de lucros e dividendos de suas filiais no Brasil. Verificou-se, ainda, uma readequação da produção de plantas produtivas no México, com a estagnação do mercado americano, para atender outros mercados em expansão, como o brasileiro. Tais movimentos exemplificam a necessidade de se buscar uma combinação entre as estratégias das empresas e os interesses nacionais.

O potencial do mercado brasileiro permite repensar o posicionamento do país, a fim de atenuar suas vulnerabilidades externas e impedir a desarticulação de sua cadeia produtiva. Tornam-se, nesse sentido, questões centrais a estrutura de proteção (regime tributário, taxa de câmbio e acordos comerciais), o desenvolvimento de motores com combustíveis alternativos (incluindo a tecnologia bicombustível), a forma de entrada dos novos concorrentes no país (com conteúdo local ou regional da produção), além da ampliação das modalidades de financiamento doméstico das montadoras nos mercados de crédito e de capitais, bem como dos fornecedores locais, para a realização de novos investimentos, e as contrapartidas envolvidas na captação de recursos públicos.

A medida anunciada pelo governo brasileiro de elevação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) incidente sobre veículos com conteúdo nacional ou regional (Mercosul e México) inferior a 65% ilustra essa preocupação com a preservação das bases industriais domésticas, a manutenção de empregos e o controle do volume importado. Numa perspectiva de longo prazo, faz-se mister uma reestruturação apoiada no desenvolvimento tecnológico e em um novo ciclo de investimentos, o que implica também refletir sobre o comportamento das montadoras instaladas no Brasil, uma vez que respondem por grande parte das importações e estão igualmente inseridas nas estratégias globais de suas corporações, de modo a procurar evitar que em um momento seguinte se observem movimentos semelhantes aos ocorridos durante a crise, negativos para a dinâmica produtiva e as contas externas do país.

Roberto Alexandre Zanchetta Borghi; é mestre em economia pelo IE/Unicamp e doutorando da Universidade de Cambridge, Inglaterra.

Fernando Sarti é diretor do IE/Unicamp e pesquisador do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia (Neit/IE/Unicamp).

Nenhum comentário:

Postar um comentário