Valor 20/03
Faz dez meses que Jorge Mussi, diretor de pós-vendas da Volvo Cars voltou a morar no Brasil, depois de uma temporada de dez anos na Suécia. Desde que regressou, o executivo tem mantido a rotina de ajustar os comandos de seu automóvel para que chamadas telefônicas e sistema de navegação sejam sempre acionados pela sua voz, como fazia na Europa. Agora, porém, sobra muito mais tempo para conectar-se ao mundo enquanto está dentro do carro. Em Gotemburgo, ele gastava exatos seis minutos de casa até o trabalho. Em São Paulo, precisa de uma hora e meia.
Os contrastes que envolvem tecnologia dos veículos, condições das estradas e trânsito frequentemente aborrecem quem compara a realidade brasileira com as de países desenvolvidos. Mas diferenças no comportamento dos motoristas revelam detalhes ainda mais chocantes. No Brasil muitos usam sistema de conexão chamado "hands free" (mãos livres) porque a legislação proíbe utilizar celular. Já na Suécia, o uso do aparelho é livre. Mas as autoridades não precisam se preocupar com isso porque, em geral, faz parte da cultura dos suecos dirigir com prudência, com as duas mãos ao volante.
A Suécia sempre foi referência em segurança e os maus hábitos no trânsito não são exclusividade brasileira. A frequência de acidentes que supostamente teriam ocorrido por distração com o uso de celular tem provocado constantes debates nos Estados Unidos, onde a legislação varia em cada Estado.
Para os especialistas e representantes da indústria, proibir não é a solução. "As pessoas não ficarão desconectadas em um mundo conectado", disse recentemente Alan Mulally, presidente mundial da Ford, que já instalou sistemas de comando de voz em mais de 4 milhões de veículos nos EUA. "A tecnologia tem de ser a solução e não o problema", afirmou Mulally.
No Brasil, a discussão é ainda mais complexa. Primeiro porque a legislação não acompanhou o avanço tecnológico. O atual Código Brasileiro de Trânsito é de 1998, quando o país ainda não tinha acesso ao sistema "bluetooth", que permite falar ao telefone por meio de viva voz, utilizando o sistema de som do próprio carro. O artigo 252 do código prevê multa e quatro pontos na carteira de habilitação a quem "dirigir o veículo utilizando-se de fones nos ouvidos conectados a aparelhagem sonora ou de telefone celular".
Apesar de o próprio Ministério das Cidades, ao qual está vinculado o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), reconhecer que "não pode ter proibição o que não está previsto na restrição", como destaca o porta-voz Marcier Trombiere, a possibilidade de usar o "bluetooth", ou "hands free", acaba causando confusão. Para especialistas do setor, juridicamente não se pode relativizar uma norma. Em vários países da Europa, há leis claras que proíbem o aparelho celular, mas permitem o "hands free".
Na prática, a autoridade do trânsito não tem como autuar quem fala com as mãos no volante. Esse motorista pode estar numa ligação telefônica ou cantando, treinando a voz, fazendo exercícios de curso de idiomas em CD ou até falando com o passageiro.
"É importante entender que falar ou ouvir é completamente diferente de discar ou segurar um telefone", destaca Carl Johan Almqvist, diretor de produto e segurança de trânsito da matriz da Volvo Caminhões, na Suécia. A análise das causas de distração em acidentes é motivo de constante pesquisa na Suécia. Segundo Almqvist, já foram constatados, por exemplo, vários casos de colisões pouco tempo antes de o motorista chegar em casa. Normalmente quando se está próximo ao destino a concentração tende a ficar reduzida porque o condutor provavelmente conhece a região e, assim, negligencia o comportamento seguro por estar cansado ou ansioso para chegar.
No caso do celular, o maior problema está nas inúmeras funções que foram sendo agregadas a um aparelho que originalmente só servia para telefonar. Não existe nada mais perigoso, segundo concordam, em unanimidade, especialistas de todo o mundo, do que digitar mensagens de texto. Trata-se de um movimento que vai totalmente contra o princípio básico para dirigir com segurança, que é manter os olhos na via e as mãos no volante.
As chances de bater o veículo enquanto se digita uma mensagem aumentam em 23,2 vezes em relação a uma condução correta, segundo um estudo que a National Highway Traffic Safety (NHTSA), a agência de segurança viária do governo dos Estados Unidos, realizou, há três anos, em simulações com caminhões. Outros testes, realizados pela Virginia Tech Transportation Institute, nos EUA, em 2009, mostraram que usar celular na mão equivale a dirigir embriagado.
No caso da pesquisa da NHTSA, digitar algo, sejam torpedos ou e-mails, aparece como uma ação muito mais perigosa do que diversas outras ações também arriscadas, como arrumar o chapéu na cabeça, ajustar uma joia, mexer em instrumentos do painel, tentar apanhar algum objeto ou ler.
Quem vive em congestionamentos pode até achar que em alguns momentos o tempo é mais do que suficiente para abrir um jornal ou passar o batom sem riscos. A Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) registrou, no ano passado, velocidade média de 18 quilômetros por hora, no horário de pico, nas vias monitoradas em São Paulo
Além disso, no Brasil nem todos têm acesso ao "bluetooth". Acionado por um botão no próprio volante do carro, o dispositivo é equipamento de série somente em modelos luxuosos, importados na maioria. No caso dos nacionais, várias marcas também ofereçam a facilidade mesmo em carros populares. Mas, muitas vezes, é preciso paciência para encomendar o carro com o sistema, nem sempre disponível no mercado. Além disso, o item quase sempre faz parte de pacotes com outros opcionais.
Sistemas de navegação embutidos no painel, que funcionam por voz, são encontrados em modelos de luxo. Mas, na maioria das vezes, esses comandos não reconhecem o idioma português.
A ausência da tecnologia não pode, no entanto, servir de desculpa para descuidos com a segurança na direção. Por isso, recomenda-se estacionar o veículo se houver necessidade de usar as mãos para ligar celular ou ativar o GPS. O mesmo procedimento é indicado por especialistas se o condutor perceber que o teor da conversa, mesmo no sistema "hands free", poderá distraí-lo. Os fatores de distração não seguem uma regra. Dependem de bom senso.
A Audi trabalha para implantar no Brasil nos próximos meses a comunicação de dados por rede sem fio (Wi-Fi) dentro do carro. "Tecnicamente, isso já é possível; estamos tratando agora da homologação e compatibilidade", afirma o gerente de produto da Audi no Brasil, Felipe Gomes. No caso, um cartão 3G, como o usado hoje nos celulares, poderá ser inserido no próprio veículo. Assim, o carro vai se transformar numa espécie de roteador, permitindo o uso de notebooks ou tablets pelos passageiros e pelo motorista - depois de estacionar o carro, claro! Dispositivos como esse auxiliam, ainda, na conexão a programas de busca de endereços como o Gloogle Earth.
A BMW prepara-se para lançar no Brasil a conectividade como ferramenta de manutenção. No caso, o motorista não precisará mais se preocupar com troca de óleo, pastilhas ou filtros. O concessionário escolhido por ele será avisado "pelo carro" e tomará as providência para encomendar as peças e entrar em contato com o cliente para agendar a troca.
Na Europa, dispositivos instalados no carro já servem também para acionar serviços de emergência, como socorro mecânico ou até hospital. A conexão é programada para funcionar a partir de alguma ação repentina no sistema de segurança, como airbags inflados numa colisão, por exemplo.
Mensagens no painel sugerindo ao motorista fazer uma pausa para um café já aparecem em alguns modelos vendidos no Brasil. No caso, o sistema é acionado quando o volante permanece na mesma posição por muito tempo. Mas na Europa começou a ser desenvolvido um dispositivo com a mesma finalidade, acionado a partir da leitura da íris do condutor. "Cada vez mais o motorista vai se tornar passageiro", destaca o gerente de vendas da BMW, Celso Fogaça.
A demanda por entretenimento também movimenta a indústria. Carros da Mercedes-Benz vendidos no Brasil já oferecem conexão com TV digital, com monitor acoplado ao painel, que desliga a imagem quando a velocidade atinge cinco quilômetros por hora. A imagem volta a aparecer quando o carro para.
No caso da Classe S, o equipamento é ainda mais sofisticado. Funciona com uma diferença ótica que bloqueia a imagem para o motorista, mas a mantém visível, no mesmo monitor, para os demais passageiros. "Nossos cliente são grandes conhecedores da marca. Às vezes temos que explicar que determinada solução ainda não chegou ao Brasil por problemas de homologação", diz o gerente de vendas e marketing da Mercedes-Benz Automóveis, Dirlei Dias.
A Smart, marca da Mercedes-Benz, acaba de lançar na Europa um sistema por meio do qual o Iphone torna-se um computador de bordo, que oferece chamadas telefônicas por voz, coleção de música, internet e sistema de navegação. O kit acompanha um porta-celular, que pode ser fixado no painel - solução que acaba com a angústia de quem não sabe onde acomodar o aparelho dentro do veículo.
E para os que não suportam ouvir o celular tocando sem atender só para dizer que não pode falar naquele momento, o governo federal dá uma mãozinha. Junto com a campanha "Mãos no volante", lançada pelo Ministério das Cidades, foi criado um aplicativo, disponível apenas para smartphones, que dá um aviso. O aparelho não toca e envia mensagem: "Estou dirigindo no momento. Ligo mais tarde."
"Não podemos tratar o celular como vilão, pois ele é muito útil em várias situações, como num acidente. Mas somente com campanhas, fiscalização e formação dos condutores podemos mudar o comportamento", afirma Marcier Trombiere, porta-voz do Ministério das Cidades.
Quando bem utilizada, a conectividade pode trazer muitos benefícios. A Volvo começou a desenvolver conexão de internet pelo rádio do automóvel. Jorge Mussi, o diretor que voltou ao Brasil, só lamenta que isso não estava disponível dez anos atrás. "Escutar uma emissora de rádio brasileira, possível pela internet, era tudo o que eu queria quando morava na Suécia".
terça-feira, 20 de março de 2012
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